A pauta ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) vem ganhando um tratamento transversal por parte de muitas corporações. O próprio Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) define a transversalidade como sendo “uma visão integrada do desenvolvimento e considera diversas dimensões, como social, econômica, cultural e ambiental. A abordagem territorial, a inovação e a sustentabilidade são temas fundamentais para a prática dessa estratégia e para assegurar o cumprimento de nossa missão, em consonância com as expectativas da sociedade”.[1]
Se o ESG é um conceito novo, precisa de um novo olhar, um novo paradigma para ser melhor compreendido. O meio ambiente, as questões sociais e a gestão corporativa não estão mais restritas ao universo de uma empresa, mas adquiriram estatura global, para poderem dialogar com diferentes atores. Portanto, envolvem questões interdependentes e transversais afetas a todas as áreas e atividades.
O conceito da transversalidade vem se firmando como essencial na incorporação dos fatores ESG, pelo simples fato que nenhuma área da empresa é um compartimento estanque, mas precisa interagir com as demais. Isso fica bem sedimentado em uma frase do sociólogo e filósofo francês Edgar Morin: “É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto”.[2]
É o sentido de conjunto, de coletivo, de global que interage, bem diferente do que por séculos norteou o mundo: o pensamento cartesiano, da divisão de trabalho, do método que separa os fenômenos em compartimentos para melhor compreendê-los. Agora, caminhamos para o pensamento holístico. O ESG exige das corporações um esforço grande em adotar novas percepções, novos valores, além de uma compreensão sistêmica do mundo, que não é mais “uma coleção de objetos isolados, mas são como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes”.[3]
Se o ESG não pode ser desconexo, nem permanecer isolado em uma torre de marfim do corporativismo, precisa explorar sua transversalidade. Funciona como uma ponte para compreender as práticas ESG dentro da estratégia de uma organização. Nada é paralelo, mas abre brechas e atua integrado para transformar. Pode ser difícil à medida que a maioria dos talentos que comanda as corporações não vive essa pluralidade, mas apenas a cultura analítica, correndo o risco de se transformar em um executor passivo, dividido entre o saber corporativo e o saber ESG, sem conseguir integrá-los.
A transversalidade exige que os talentos das empresas detenham competências como sensibilidade e capacidade de reflexão. A despeito da formação profissional, torna-se necessário ampliar o conhecimento sobre os novos temas, que dialogam com os antigos, renovar atitudes, conjunto de valores e ter responsabilidade com a transformação social, ambiental, de gestão e também comprometimento consigo próprio e com o bem estar comum. É a formação para a transversalidade, entendendo esse conceito como a abertura para expansão das práticas ESG.
O ESG trespassa, assim, toda a organização e requer ação em várias áreas de conhecimento e competência. Motivo pelo qual há evidências de que se deve começar por ter alguém dentro da empresa que olhe para a sustentabilidade de forma transversal. Além de uma estratégia delineada, as organizações precisam de alguém que agarre a batuta na condução de todas estas áreas.
Tal como uma orquestra não vive sem um maestro, o ESG requer alguém que faça a ligação entre as várias áreas que são chamadas a intervir na execução da estratégia estabelecida. Muitas vezes, não se trata tanto da falta de talento nas áreas de ESG, mas da falta de delineação de uma estratégia e da nomeação de um responsável por fazer executar a mesma. Esse serviço pode ser feito internamente ou por contratação de terceiros, que exerça um papel de ESG as a service.
A transversalidade no ESG também pode contribuir para minar o greenwashing, uma das principais mazelas dessa prática, que acontece quando as empresas comunicam dados superdimensionados sobre seus compromissos metas e realizações sustentáveis. À medida que exige um comprometimento conjunto de todas as áreas da empresa em sua jornada pela sustentabilidade, não deixa espaços para que prosperem as “maçãs podres”. Quem pensa que o greenwashing nasceu recentemente, se engana. É conhecido o caso de uma rede hoteleira, na década de 1960, que colocava nos apartamentos um aviso para os hóspedes reutilizarem as toalhas e, assim, ajudarem a salvar o meio ambiente, poupando água e contaminação dos rios e oceanos com produtos químicos. Era só greenwashing para economizar os custos com o serviço de lavanderia.
A transversalidade pode ser aplicada ao ESG em grandes e pequenos projetos, sejam públicos ou privados, como do Vale Encantado, uma comunidade isolada do Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, próximo à Floresta da Tijuca. Sem recursos, dependeu do interesse e mobilização dos moradores, ONGs e organizações para construir um sistema biosustentável para captar e tratar o esgoto das casas antes de chegar ao meio ambiente, concluído no ano passado. Assim, os moradores puderam dar um passo em direção ao sonho de a comunidade ser um ponto turístico, onde as quedas d’água sejam limpas, uma vez que a extração de granito, que era uma fonte de renda local, mas com grande impacto ambiental, encerrou as atividades na região.
Na esfera pública, o conceito de transversalidade está presente no modelo do Fundo Amazônia, que foi retomado pelo atual governo brasileiro e que está voltado ao desenvolvimento sustentável em três eixos: ambiental, social e econômico. O fundo foi criado em 2008 como uma associação civil sem fins lucrativos com personalidade jurídica de direito privado destinada a captar doações para investimentos para prevenir, monitorar e combater o desmatamento na Amazônia, além de contribuir para a conservação e uso sustentável da floresta. O fundo faz a integração com governos e iniciativa privada, tendo como maior doador a Noruega, seguida pela Alemanha, Petrobras e, mais recentemente, os Estados Unidos, que anunciaram doação inicial de US$ 50 milhões depois da recente visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao colega norte-americano, Joe Biden.
O fundo é gerido pelo BNDES, sendo que os doadores internacionais e nacionais não possuem ingerência sobre as decisões, uma vez que não são membros do Comitê Orientador, constituído por representantes do governo federal, governos estaduais da Amazônia e sociedade civil (universidades, produtores rurais, povos indígenas e fórum brasileiro de ONGs), explicitando na prática uma ampla governança participativa. O Comitê Técnico do Fundo atesta a redução das emissões de carbono decorrente dos projetos, sendo fundamental para que o Brasil cumpra seus compromissos no Acordo de Paris.
A perspectiva de transversalidade do Fundo Amazônia está também no seu financiamento por países e empresas, que voluntariamente promovem doações, que se reverteram para mais de 100 projetos desenvolvidos na região amazônica, beneficiando povos originários, ribeirinhos e população local. Reúne uma pauta voltada à gestão de florestas, monitoramento ambiental (20%), manejo florestal sustentável, uso sustentável da vegetação, zoneamento ecológico, regularização fundiária, conservação e uso sustentável da biodiversidade e recuperação de área desmatadas, tendo atingido 45 milhões de hectares de áreas protegidas. A efetividade do fundo, segundo a CGU (Controladoria Geral da União), foi garantir apoio a 65% de terras indígenas, consolidação de gestão de 190 Unidades de Conservação, 1,4 milhão de imóveis inscritos no Cadastro Ambiental Rural e beneficiar 202 mil pessoas gerando renda com atividades produtivas sustentáveis, dentre outros avanços, como segurança alimentar.
Com a paralisação do Fundo Amazônia, no período de 2019 a 2021, segundo relatório da CGU[4], o país deixou de receber créditos no valor estimado de US$ 20 bilhões. Quando foi paralisado, o fundo tinha em caixa R$ 3,39 bilhões, captados em doações, recursos e que poderiam ter sido usados na preservação do bioma Amazônia, reforçando políticas públicas nesse sentido. Dentro do fundo, os programas se distribuem em 38% para o terceiro setor, 31% para os estados, 28% para municípios, 1% para universidades e ações internacionais.
Sem dúvida, o Fundo Amazônia está no centro das preocupações atuais do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, tanto que na última reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos a ministra Marina Silva não deixou de enfatizar a importância dos investimentos das nações mais ricas do mundo nos países em desenvolvimento. Ela lembrou a promessa – feita pelos países ricos na Cúpula do Clima – de auxiliar países de renda baixa e média no sentido de enfrentarem o aquecimento global, com doação de US$ 100 bilhões/anuais, até porque os países em desenvolvimento contribuíram menos para a emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) e são os que mais sofrem com os efeitos mais severos das mudanças climáticas. Atrair investimentos para o Fundo Amazônia é fundamental para o governo cumprir a promessa de desmatamento zero até 2030 e para evitar que ocorram tragédias humanitárias, como a vivida pelos yanomamis.
A transversalidade, portanto, nada mais é que o “tecer junto” de que fala Morin, permitindo a integração de vários atores com o comprometimento do bem comum, da ética, de valores e com a transformação da sociedade e da realidade, como evidencia a Agenda 2030 da ONU. Por meio da abordagem da transversalidade, as corporações ajudam a superar uma possível fragmentação do ESG e alinham suas práticas quanto ao planejamento estratégico, metas e resultados. Vale lembrar que o bem comum é função, fim ou tarefa da sociedade, constituindo um valor político, subordinado à moral.[5]
[1] Disponível em: https://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Hotsites/Relatorio_Anual_2015/estrategia-e-temas-transversais.html
[2] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
[3] CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas visos. Cultrix: São Paulo, 1996
[4] Disponível em: https://oeco.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-de-Avaliacao-Final-Fundo-Amazonia-v-publicacao-5.pdf
[5] LEE, Yun Ki. Fecho Reflexivo na Dignidade: uma inspiração na perspectiva quântica do direito. São Paulo: Dialética, 2020.
momento de envio das cargas, possibilitando o corte de custos logísticos e tempo.
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
FABIO RIVELLI – Advogado, sócio da LBCA, mestrando na PUC-SP e presidente da Comissão de Inovação, Gestão e Tecnologia da OAB-Guarulhos
PATRICIA BLUMBERG – Diretora de ESG da Lee, Brock, Camargo Advogados e Master em Digital Communication pela Westminster Kingsway College London