Em 2022, o uso de inteligência artificial pelo Supremo Tribunal Federal (STF) foi ampliado[1] para abranger as Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030 (RAFA): uma ferramenta desenvolvida para classificar as ações judiciais de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ODS-ONU)[2].
Os 17 ODS foram criados para combater a fome e a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima, além de buscar parcerias para o atingimento de cada um deles. O plano foi concebido através de um acordo firmado, em 2015, com a adoção do documento “Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” (A/70/L.1) [3]. É um guia e um plano de ação para um caminho mais resiliente até 2030. Os 17 ODS englobam 169 metas de concretização em modo integrado. Isso significa que para cada ODS são estipulados caminhos e proposições aptas a concretizá-los gradativamente em áreas essenciais, tendo como marco o ano de 2030.
Nesse sentido, a RAFA auxilia o STF a identificar os 17 ODS em textos de acórdãos ou petições, atuando por meio de redes neurais com comparação semântica – o algoritmo treinado com rede neural convolucional (CNN), memória de longo prazo (LSTM) e rede neural customizada –, por meio de machine learning e deep learning.
Durante as rodadas de testes, foram considerados inicialmente os ODS que possuíam maior número de ocorrências pela classificação manual do Grupo de Trabalho da Agenda 2030, que faz parte da institucionalização desta agenda no STF, por meio da Resolução 710/2020. Com os refinamentos posteriores, foram sendo incorporados os elementos restantes e, ao final, a ferramenta foi capaz de apresentar um grau de precisão acima de 90% nos últimos testes.[4]
A aprendizagem é supervisionada, o que significa que pessoas farão verificações de desempenho da RAFA. Inicialmente, funcionou como etiquetador de processos, cuja temática era potencialmente conectada aos ODS. Num segundo momento, a funcionalidade de análise estatística dos termos listados nas petições foi agregado, juntamente com um leitor Optical Character Recognition (OCR), de reconhecimento de caracteres ópticos.[5]
O sistema limpa termos que são considerados irrelevantes para a classificação, e, em seguida, organiza os termos por similaridade e por agrupamentos de termos (cluster). As palavras são etiquetadas de acordo com a função gramatical. Essa redução de caracteres e termos facilita o processamento da informação. A partir disso, o sistema, após entender o conteúdo dos processos ou das decisões, compara os resultados obtidos com o histórico de classificações já realizadas.[6]
A organização por similaridade mostrou-se complexa por causa da variedade de palavras nas peças. Cada peticionante escreve com vocabulários e formatos distintos. Outra dificuldade encontrada foi a pouca amostragem de processos para alguns ODS. O treinamento por machine learning exige grandes volumes de dados de referência. Por isso, apenas os ODS 16, 8, 10 e 3 estão sob classificação da RAFA. A opção foi estabelecer um algoritmo para cada desses ODS, deixando a busca por processos similares mais específica.[7] A abordagem binária foi então aplicada, de modo que cada termo ganha uma numeração composta de zeros (0) e uns (1) para identificar cada termo. Trata-se de uma transformação de textos em vetores de números.[8]
Ainda que as perspectivas sejam promissoras, como toda IA, a RAFA deverá ser submetida aos testes específicos de ética e regulação, para que a sua modulação seja proporcional, adequada, lícita, e não atingida por vieses discriminatórios.[9]
Pelas informações que se têm, o Brasil conta com “o primeiro Judiciário do mundo a utilizar essa nova classificação, mostrando a relação dos processos em tramitação com os objetivos da Agenda 2030 da ONU”.[10]
Sendo uma das maiores finalidades dos ODS a concretização dos direitos humanos, é fato que os Estados são os principais responsáveis por se adequarem às metas globais, implementando e acompanhando os ODS por meio de planos, políticas e outras medidas. Para além disso, o compromisso com os ODS deve ser também cooperativo, envolvendo o setor empresarial, instituições e demais agentes da sociedade civil.
A implementação da RAFA dialoga com o ESG (Environmental, Social e Governance), cujo conjunto de práticas ambientais, sociais e de governança servem também para orientar investimentos, escolhas de consumo e demais ações corporativas.
É por isso que os ODS se engajam com as práticas ESG e vice-versa da ONU, tudo em prol da sustentabilidade. O setor privado pode – e deve – igualmente estar comprometido com a concretização da Agenda 2030, pois os ODS representam as próprias práticas ESG na busca do bem-estar geral, de todas e todos. Inclusive, os ODS representam componentes a serem avaliados nos relatórios de ESG, já que as práticas ambientais, sociais e de governança comunicam-se diretamente com os ODS.
Pelos elementos de intersecção entre ESG e ODS, a classificação de ações judiciais a partir dos ODS constrói mais uma fonte de alta valia de diretrizes e critérios a serem considerados em práticas ESG, que podem ser aplicados de acordo com os contextos e temas envolvidos. A avaliação quantitativa e os marcadores contidos nas decisões judiciais podem trazer índices sobre o grau de repercussão do tema no Brasil e no nosso Judiciário, ou, ainda, quais fatores do ESG estão sendo mais ou menos protagonistas.
Por fim, cabe uma interpretação no ESG para que se compreenda se os ODS mais demandados judicialmente estão deficitários ou se esses ODS, via de regra, encontram no Judiciário uma rota de efetivação, já que no nosso contexto, a alta judicialização tem sido um fenômeno comum. Por exemplo, um indicador que a classificação possa gerar, sempre sujeito à análise mais detalhada, é a capacidade de resposta de outros entes locais para os ODS, já que o número de ações que chegam ao STF, independente do momento recursal, é indicativo de problemas estruturais de base para o cumprimento dos ODS.
As impressões deste momento são apenas o começo. Diante da iniciativa, será essencial que as práticas ESG não deixem de observar os percursos futuros do funcionamento da RAFA, junto com o seu aprimoramento, avaliações de risco e regulação.
[1] Desde 2018, o STF utiliza o VICTOR, que também é um sistema que utiliza IA para auxiliar a tramitação dos processos e a avaliação judicial, atuando: a) na separação e classificação de peças processuais; b) identificando os principais temas de repercussão geral do tribunal. O desenvolvimento ocorreu em parceria do STF com a Universidade de Brasília (UNB), sendo pioneiro na aplicação de IA no judiciário brasileiro. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Projeto Victor avança em pesquisa e desenvolvimento para identificação dos temas de repercussão geral. 19 de agosto de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=471331&ori=1. Acesso em: 30 jan. 2023
[2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteligência artificial permitirá classificação dos processos do STF sob a ótica dos direitos humanos. 17 de maio de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=487134&ori=1. Acesso em: 30 jan. 2023.
[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteligência artificial permitirá classificação dos processos do STF sob a ótica dos direitos humanos. 17 de maio de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=487134&ori=1. Acesso em: 30 jan. 2023.
[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF desenvolve Inteligência Artificial aplicada à Agenda 2030 da ONU. 18 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=481995&ori=1. Acesso em: 30 jan. 2023.
[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Documentação RAFA 2030. 2023. Disponível em: https://agenda2030rafa.github.io/rafa_documentacao/. Acesso em: 09 fev. 2023.
[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Documentação RAFA 2030. 2023. Disponível em: https://agenda2030rafa.github.io/rafa_documentacao/. Acesso em: 09 fev. 2023.
[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Documentação RAFA 2030. 2023. Disponível em: https://agenda2030rafa.github.io/rafa_documentacao/. Acesso em: 09 fev. 2023
[8] Sobre o funcionamento da RAFA 2030: https://www.youtube.com/watch?v=Fhl0snROqfU.
[9] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF desenvolve Inteligência Artificial aplicada à Agenda 2030 da ONU. 18 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=481995&ori=1. Acesso em: 30 jan. 2023.
[10] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteligência artificial permitirá classificação dos processos do STF sob a ótica dos direitos humanos. 17 de maio de 2022. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=487134&ori=1. Acesso em: 30 jan. 2023.
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BRUNA MARQUES DA SILVA – Advogada da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)
THIAGO GOMES MARCÍLIO – Advogado da Lee, Brock, Camargo Advogados. Mestre em Direito pela PUC-SP, pós-graduando na PGE-SP e pesquisador C4AI-USP-IBM-Fapesp
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito