Crescem as expectativas acerca das contribuições da COP 26 (Conferência das Partes sobre Mudança do Clima da ONU) à agenda ESG (Environmental, Social and Governance) – que mensura práticas ambientais, sociais e de governança–, depois que o encontro climático foi adiado em um ano em decorrência da pandemia da Covid-19.
Durante este período, a relevância dos fatores ESG cresceu exponencialmente. O aumento da busca pelo termo ESG na internet é de quase 400% e leva o mercado a refletir sobre a necessidade de construir um mundo ambientalmente mais equilibrado e socialmente mais justo, ensejando pontos de mutação no paradigma ou na verdade já conhecida.
O Acordo de Paris juridicamente dialoga com o artigo 225 da Constituição Federal de que todos os brasileiros têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas é considerado um acordo muito flexível, sem a natureza vinculativa dos tratados climáticos anteriores. Portanto, tem um sistema de responsabilidade mais voluntarista para todas as partes. Cada país apresenta sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), que pode ser ajustada para cima ou para baixo, conforme suas ambições climáticas.
Em 2021, contra as expectativas, o Brasil bateu um recorde nos alertas de desmatamento da Amazônia, que já perdeu quase 9.000 km² de florestas, uma das principais causas da emissão de gases de efeito estufa.[1] Mesmo diante dessa realidade que parece se repetir, as empresas brasileiras – das indústrias de transformação às startups – que participam da COP 26 querem mostrar que temos vocação ambiental e estamos, sim, interconectados com o planeta.
O evento, que acontece em Glasgow (Escócia) neste início de novembro, já deu o start para um novo paradigma ambiental com a corrida “Race to Zero”[2], cuja meta é chegar a Net Zero. Para tanto, os participantes não podem adicionar emissões de gases de efeito estufa à atmosfera em suas operações até 2050. Sua empresa já se inscreveu? Não? Mais de 3.000 corporações já largaram à sua frente, incluindo 17 companhias nacionais.
Essa iniciativa da COP 26 quer sinalizar que o aquecimento global não é problema somente de governos, mas de empresas, investidores, universidades, estados etc., comprometidos em alcançar emissões líquidas de carbono zero até a metade deste século. Ao todo, cerca de 100 companhias brasileiras vão marcar presença no evento com interesses nas soluções climáticas que visam atingir as metas do Acordo de Paris.
Para compartilhar desse novo paradigma expresso na “race” é necessário que cada corporação cumpra suas metas próprias, como atingir zero gases de efeito estufa o mais rápido possível, definindo metas provisórias para a próxima década e relatando publicamente seu progresso no sentido de contribuir para reduzir a emissão de gases, o aquecimento global e agilizar a transição energética para atingir uma economia de baixo carbono, sob supervisão científica da Universidade de Oxford, que ajuda a evitar o verniz do “tokenismo”.
A palavra principal dessa COP 26, portanto, pode ser “transformação”. Não se pode perder tempo para superar a emergência climática, embora o Acordo de Paris juridicamente vá se construindo em sistemas de responsabilidade das partes, sem se constituir em um tratado internacional vinculativo, o que permitiu a retirada dos EUA do acordo em 2017, causando grande celeuma ambiental e jurídica.
O Acordo de Paris delimitou a necessidade de se manter neste século o aquecimento global abaixo dos 2ºC, acima dos níveis pré-industriais, realizando esforços para não ultrapassar a temperatura de 1,5ºC. Para termos uma visão clara da urgência, basta consultar o Relatório Especial de Aquecimento Global 1,5 ºC do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), publicado em 2018[3], que compara os impactos sobre o planeta do aquecimento global nas marcas de 1,5ºC e 2ºC.
Limitar o aquecimento a 1,5ºC dependerá de uma atuação para reduzir o consumo de energia, descarbonizar a eletricidade e outros combustíveis, reduzir emissões agrícolas, baixar a demanda de energia e de bens de consumo intensivo, dentre outras medidas. O estudo afirma que limitar o aquecimento global a 1,5ºC pode resultar em expor cerca de 420 milhões de pessoas a ondas de calor extremas e vulnerabilidades constantes.
Se a temperatura do planeta subir 2ºC, a escassez de água será maior, o estresse hídrico atingirá 50% da população mundial e o risco da fome crescerá com a redução da produção de grãos. A 2ºC, a extinção da biodiversidade também será um fato, atingindo 18% dos insetos, 16% das plantas e 8% dos vertebrados. A 1,5 ºC, esses números cairiam pela metade. As mudanças climáticas também provocarão desaceleração econômica, afetando muitos países, inclusive o Brasil.
Daí a urgência pela busca da neutralidade zero. Lembrando o poeta Mario Quintana, “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente”.[4] Mas, com foco em resultados, a COP 26 não quer repetir o passado e o insucesso das COPs 24 e 25. Conta com players do mercado mobilizados para apoiar metas climáticas ambiciosas, caso do mercado financeiro, e sinaliza para avanços, indo além de um possível “blá-blá-blá” de lideranças mundiais, tão criticado pela ativista sueca Greta Thunberg, na cúpula da Youth4Climate 2021, que antecedeu o evento da Escócia.
Em 2020, o Brasil alterou a sua NDC, apresentada em 2015, e reviu a meta de emissões de carbono, ampliando a meta de neutralidade climática, com emissões líquidas nulas, somente para 2060. Tínhamos como meta reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e de 43% até 2030, tomando como base o Segundo Inventário Nacional em relação ao ano de 2005, que foi atualizado pelo Terceiro Inventário Nacional. Essa mudança alterou a metodologia de cálculo de emissões fixadas, de 2,1 bilhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente (GtCo2e) para 2,8 (GtCo2e), o que nos permite emitir mais gases. Dessa forma, é como se estivéssemos correndo em sentido contrário à “Race to Zero”.
Em contraposição, dois fatores podem agregar robustez legal à COP 26 com novos pontos de negociação que ensejam uma maior ambição climática: a regulação do mercado internacional de crédito de carbono, que viabilizará metas ambientais para muitas corporações, e a participação ativa de entidades que congregam importantes segmentos da indústria financeira, que vêm reforçando uma série de ações em defesa do clima.[5]
Um acordo sobre o mercado de carbono interessa igualmente a compradores públicos e privados. Emitir gases de efeito estufa tem um custo climático a ser pago pelo emissor (governos e empresas). A receita pode ser reinvestida em tecnologia climática ou ter outra destinação. É uma espécie de lei da oferta e da procura. Atualmente o preço de carbono mais caro do mundo é da Suécia – € 116/tonelada, mas calcula-se que o ideal seria adotar o preço de US$ 100/tonelada. Os preços devem ser universais para que os países cumpram as metas previstas em suas NDC’s.
Calcula-se que o potencial do mercado de crédito de carbono, envolvendo o setor privado, poderá superar US$ 50 bilhões em 2050 e se desenvolver além da primeira fase adotada pelo Protocolo de Kyoto, em 1997, que promoveu compensações com base em projetos denominados Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).
O novo mercado de carbono traz um novo paradigma e pode surgir com base no artigo 6º do Acordo de Paris, devendo contribuir para a transição de zero líquido em 2050 das empresas, que buscarem compensar suas emissões de gases de efeito estufa. A partir dos termos do acordo firmado para regulação desse mercado poderão ser estabelecidos sistemas de mensuração, verificação, certificação e contabilidade das emissões e os governos poderão vender as reduções dos excedentes que estabeleceram voluntariamente nas Contribuições Nacionalmente Determinadas e manter o aquecimento do planeta em patamar seguro.
No Brasil, a Câmara dos Deputados também disputa a primazia de regulamentar, por meio do PL 528/2021, a criação do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), visando compra e venda de crédito de carbono no país, definido no texto como sendo “título de direito sobre bem intangível, incorpóreo, transacional, fungível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de carbono equivalente”. (artigo 2º, I).
O projeto, no artigo 8º, também propõe isentar de tributos federais pessoas jurídicas de direito privado que transacionarem no mercado voluntario de crédito de carbono. [6] A princípio, o PL seria apresentado pela delegação brasileira na COP 26, mas houve recuo do governo. O Brasil foi convidado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a mapear o preço do carbono. Segundo estimativa da consultoria WayCarbon, com um portfólio de ativos de baixo carbono o Brasil tem potencial para remover 1 bilhão de toneladas de CO2 na próxima década.
A COP 26 pode ser o cenário para a costura de um acordo juridicamente vinculativo, que poderá ir além de mecanismo de conformidade, evidenciando a intenção dos países-partes de cumprir os compromissos assumidos. Os players do mercado de investidores, credores e seguradoras reforçam a necessidade de informações e regras transparentes para apoiar decisões sobre riscos e oportunidades. Eles querem saber como os desastres naturais podem influir em seus negócios e comprometer os seus ativos. A COP 26, portanto, torna-se um palco ideal para unir o mercado em torno de dados uniformes e confiáveis, ampliara luta para mudar o paradigma ambiental para zero líquido em 2050 e reforçar as práticas ESG.
Basta lembrar que a Comissão Europeia, responsável pela Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD), já se manifestou em abril deste ano, dizendo que “nenhum padrão ou estrutura existente satisfaz as necessidades da união de relatórios detalhados de sustentabilidade por si só”.
Para a UE, uma atividade econômica somente será ambientalmente sustentável se atender pelo menos um dos seus seis objetivos ambientais: “mitigação das mudanças climáticas, adaptação às mudanças climáticas, uso sustentável e proteção da água e dos recursos marinhos, transição para uma economia circular, prevenção e controle da poluição ou proteção e restauração da biodiversidade e dos ecossistemas”.[7]
Atrás da União Europeia, os Estados Unidos também buscam um novo paradigma ambiental. Não chegam à COP 26 de mãos vazias, fecharam um acordo com a UE para reduzirem o metano em 30% até 2030. Internamente, aprovaram na Câmara a Lei de Melhoria da Governança Corporativa e Proteção do Investidor. Para seu cumprimento, a Securities and Exchange Commission (SEC) deve editar regras para divulgar ações corporativas envolvendo a agenda ESG.
A justificativa do projeto está no fato de que investidores americanos consideram que as divulgações voluntárias de métricas ESG são inadequadas para uma efetiva avaliação. A SEC, portanto, quer saber se os processos e práticas correspondem às divulgações corporativas sobre questões climáticas e já alertou que as ações de fiscalização serão intensificadas.[8]
Nesse caldo de interesses ambientais convergentes, a COP 26 reúne elementos para fomentar ainda mais as demandas por um acordo legalmente vinculante entre os países participantes, porque resultados climáticos afetam a economia, sendo capazes de renovar e transcender a garantia de conformidade para um futuro sustentável de baixo carbono e mais comprometido com o conceito ESG. Cumpre, portanto, a menção visionária do “I Ching” sobre o ponto de mutação: “Ao término de um período de decadência sobrevém o ponto de mutação. A luz poderosa que fora banida ressurge. Há movimento, mas este não é gerado pela força… O movimento é natural, surge espontaneamente. Por essa razão, a transformação do antigo, torna se fácil”.[9]
[1] Disponível em: https://oeco.org.br/noticias/desmatamento-na-amazonia-ja-chega-a-quase-9-mil-km%c2%b2-em-2021-mostra-imazon/
[2] Disponível em: https://unfccc.int/climate-action/race-to-zero-campaign
[3] Disponível em: https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2019/07/SPM-Portuguese-version.pdf
[4] Quintana, Mário. Poesias Completas. São Paulo: Nova Aguilar, 2006.
[5] Disponível em: https://www.unpri.org
[6] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1965628
[7] Disponível em: https://ec.europa.eu/info/business-economy-euro/company-reporting-and-auditing/company-reporting/corporate-sustainability-reporting_en
[8] Disponível em: https://www.jdsupra.com/legalnews/investors-and-regulators-turning-up-the-6538549/
[9] CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix,1982, p.7