O ano mal começou e já temos o ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) e a sustentabilidade expostos às incertezas e contradições, se levarmos em conta as propostas e desafios apresentados na reunião anual do Fórum Econômico Mundial (Davos), realizado em janeiro na Suíça.
O ESG segue com um pé em uma canoa e outro pé em outra. Uma delas é do debate ideológico republicano, fomentado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O outro pé está na canoa do debate da regulamentação da União Europeia. Uma cisão difícil de conciliar, porque a primeira serve de entrave e a segunda visa a promover uma evolução.
Por qual optar? Em que rota navegar? Davos atualizou seu manifesto, sugerindo um “melhor tipo de capitalismo”. Já havia divulgado o Manifesto de Davos, de 1973, Um código de ética para líderes empresariais, e o de 2020, O propósito universal de uma empresa na Quarta Revolução Industrial. Neste ano, Davos, sob a aura das tecnologias de inteligência artificial, continua a carregar em seu DNA a tese de que as empresas devem gerar lucro, mas não podem deixar de lado suas responsabilidades sociais e ambientais.
O novo Manifesto da Davos segue apoiando o capitalismo de stakeholders (das partes interessadas) e enfatiza a necessidade de os dados das corporações serem cada vez mais transparentes (relatórios ESG), as métricas mais consistentes, os investimentos na sustentabilidade a longo prazo mais amplos, assim como o apoio às comunidades vulneráveis e a necessidade de reduzir as desigualdades em um mundo cada vez mais fragmentado em domínios geopolíticos, econômicos e tecnológicos.
É um olhar que mira os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU. A governança corporativa exige um compromisso contínuo, e o monitoramento periódico aliado à publicação de relatórios anuais se mostram essenciais para transformar boas intenções em resultados mensuráveis. Como destacado no Manifesto de Davos, métricas consistentes e dados transparentes não são apenas exigências regulatórias, mas pilares que sustentam a confiança e a responsabilidade corporativa em tempos de fragmentação econômica e social.
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Relatórios ESG, quando bem estruturados, permitem não apenas rastrear o impacto das ações, mas alinhar decisões estratégicas às demandas dos stakeholders, promovendo a evolução constante da organização. Essa prática reforça a capacidade das empresas de conciliar lucratividade e impacto social, reafirmando o papel do capitalismo de stakeholders como uma rota viável para o futuro.
O desafio a esse discurso veio na participação de Trump em Davos, por videoconferência. Ele prometeu uma nova “Era de Ouro” para a América, da qual faz parte a expansão das empresas de petróleo e gás, expressa no mantra drill, baby, drill (perfure, bebê, perfure).
Ao mesmo tempo que declarou “estado de emergência energética” em seu país, saiu do Acordo de Paris, voltado a combater às mudanças climáticas, que tem entre suas principais frentes a restrição ao emprego de combustíveis fósseis, fomentadores da mudança do clima na transição para uma economia descarbonizada. Trump não citou, mas engessou as normas ESG da Securities and Exchange Commission (SEC), agência que regula o mercado de capitais dos EUA, que seria um impulsionador ESG.
Em contraponto, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen disse que o “Acordo de Paris contina sendo a melhor esperança de toda a humanidade. Assim sendo, a Europa manterá o curso [de sua canoa] e continuará trabalhando com todas as nações que queiram proteger a natureza e parar o aquecimento global”. Também citou que “a mudança climática está no topo da agenda global”, seja na economia circular ou créditos de carbono.
Na verdade, a questão regulatória da União Europeia vem gerando dúvidas. Antes, vista como um avanço normativo e referência para o mundo, hoje recebe críticas pelo seu excesso de detalhamento e exigências, caso da Lei Antidesmatamento, Diretiva de Due Diligence em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD), voltada a suprir informações sobre o ESG, entre outras.
Já está em curso uma simplificação regulatória referente à sustentabilidade corporativa da União Europeia, sendo que a pressão nesse sentido começou no ano passado e se intensificou, puxada pela necessidade de ampliar a competitividade do bloco europeu sob o argumento que o novo regramento estaria sendo muito oneroso para as companhias, mesmos para as grandes empresas.
Nesse sentido, a estratégia de simplificação em curso deve, por exemplo, reduzir as solicitações de informações de parceiros comerciais na cadeia de fornecedores das empresas, diminuindo a carga de relatórios quanto à devida diligência ambiental e de direitos humanos.
Independente dos diferentes pontos de vista, o que é ineludível são os fenômenos climáticos extremos que batem às portas das empresas, indiscriminadamente. Será possível ao mundo acostumar-se com as ondas de calor intensas, secas severas, tempestades catastróficas, inundações tsunâmicas, incêndios florestais, ciclones etc.? É possível ignorar as mudanças do clima? Com que urgência as corporações precisam adotar práticas sustentáveis para seus negócios que atuam na redução de sua pegada de carbono e estratégias de mitigação climática? Há, portanto, um desafio no ar, além de Davos.
No fator social, uma das ordens executivas de Trump envolveu o fim dos programas DEI (diversidade, equidade e inclusão) no governo federal, agora considerados ilegais. Ato contínuo, grandes corporações estão encerrando seus programas de DEI para grupos historicamente sub-representados, como mulheres, negros, LGBTs, PcDs, etc.
Em complemento, Trump ainda revogou uma diretiva antiga, de 1965, que estipulava que contratantes federais privados mantivessem programas antidiscriminação. Na nova era norte-americana, a meritocracia volta a viger em detrimento da equidade, um conceito que surge nos anos 2020, com o assassinato de George Floyd e de outros negros em decorrência da violência policial e leva às ruas ativistas e movimentos, como o Black Lives Matter, em defesa de uma sociedade mais justa, social e racialmente.
Na guerra de narrativas, a equidade acabou se transformando no oposto do significado original e virou um quesito de discriminação que deixaria os norte-americanos brancos em desvantagem, se comparados a outros grupos identitários. Seria o chamado racismo reverso, que no Brasil não é juridicamente aceito, em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.
Contudo, a tendência de grandes marcas norte-americanas de reduzirem ou encerrarem seus programas DEI ainda não teve impacto visível na maioria das empresas brasileiras, que continuam impulsionando suas políticas, compromissos e metas de diversidade e inclusão, até porque as propostas e as práticas nos dois países percorreram caminhos diferentes. Algumas companhias nacionais têm até se manifestado publicamente de que não irão retroceder em suas práticas de diversidade e inclusão.
Nada indica que os movimentos anti-ESG nos Estados Unidos possam causar danos irreversíveis ao longo da administração Trump 2.0, principalmente se lembrarmos que Wall Street ficou sob fogo cruzado dos republicanos por anos.
Há, sem dúvida, um movimento corporativo sem maiores consequências, seguindo o balanço das canoas. Para evitar reações negativas, por exemplo, gestores financeiros não falam mais publicamente sobre metas climáticas ou utilizam o termo ESG; mas não surgiu nenhuma outra iniciativa impactante como de New Hampshire, que apresentou projeto legislativo (rejeitado) para criminalizar o ESG.
Está na hora de ficarmos atentos à terceira margem do rio, como ensinou Guimarães Rosa. O rio, para a maioria das pessoas, possui somente duas margens opostas. Isso se estivermos pensando com a razão. A terceira margem é uma dimensão não conhecida, abstrata, mas que no conto do Rosa pode ser a canoa, para onde se dirigiu o personagem do escritor. O ESG também segue na terceira margem do rio, na canoa-metáfora, até encontrar seu melhor destino.
Yun Ki Lee – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados. Doutorando em Direito Internacional Privado pela USP, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
Patricia Blumberg – Diretora de ESG da Lee, Brock, Camargo Advogados e Master em Digital Communication pela Westminster Kingsway College London