Como “uma tríade de boas práticas nos campos ambiental e social, regidas com governança, cuja finalidade é promover o bem-estar geral”[1], é plausível afirmar que já existe um arcabouço legal voltado a respaldar o ESG no sistema jurídico vigente. Mas, então, qual e como seria o tal ordenamento jurídico invocável para fundamentar o ESG?
É certo que não se tem notícia, ao menos ainda, de um Codex Iuris ESG, um General ESG Regulation ou uma Lei Geral de ESG, mas é inegável que os valores do ESG já se encontram agasalhados em normas jurídicas, sob a forma de princípios norteadores dos ordenamentos legais, que é como valores costumam adentrar em sistemas normativos.
Assim, pelo caminho lógico de buscar o arcabouço jurídico, e até de construí-lo com normas em vigência, (i) partimos da identificação dos valores que cercam o ESG para (ii) encontrarmos os correspondentes princípios no campo do Direito e, desse modo, (iii) chegarmos a normas jurídicas específicas, iniciando-se por aquelas que ocupam o topo da pirâmide normativa e incluindo as normas internacionais, supranacionais, constitucionais, infraconstitucionais e até as infralegais.
Pelos valores carregados no ESG, depuramos três princípios primordiais: a dignidade da pessoa humana, o bem-estar e o bem de todos, presentes tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) quanto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (CADH) e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem / Direitos Humanos (CEDH), bem como na Constituição Federal de 1988 (CF/1988).
No todo, um arcabouço normativo com esses marcos legais já seria suficiente para oferecer um caminho jurídico integrador e seguro para as práticas ESG.
Afinal, a partir da DUDH, a “dignidade humana passou a ser reconhecida e declarada, positivamente, como o fundamento primordial, sendo nela entrelaçada todos os direitos humanos: a dignidade da pessoa humana ganha os contornos atuais de qualidade essencial e intrínseca de cada pessoa humana, inalienável e irrenunciável, sendo revelada como um valor inerente que caracteriza o ser humano enquanto tal (e não como objeto, coisa ou instrumento, enfim, jamais como mero meio para deixar de ser fim em si mesmo), não podendo, dessa forma, ser desconsiderada, subtraída ou mesmo disposta, seja por outros ou por si mesmo, restando justificado, outrossim, por todos, o seu reconhecimento, proteção, promoção, cujo limite é a própria dignidade da pessoa humana, de si próprio , de outros e de todos”[2].
Por aqui, a dignidade da pessoa humana vem servindo de base para decisões delimitar e assegurar os mais diferentes direitos fundamentais e humanos nos tribunais brasileiros, sendo que o respectivo princípio encontra-se elevado a status constitucional máximo, como um dos fundamentos da nossa sociedade e com vistas a reforçar ainda mais a proteção de tais direitos basilares e a persecução dos objetivos primordiais de construir uma sociedade livre, justa e solidária, de garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e de reduzir as desigualdades sociais e regionais, com o fim de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF/1988, arts. 1º, III e 3º).
A dignidade da pessoa humana, o bem-estar e o bem de todos, inexoravelmente presentes nas constituições de todos Estados democráticos de Direito, buscam proteger a dignidade de cada um e de todos, cujo eixo é a afirmação dos direitos elementares que, segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio, tornaram-se, ao mesmo tempo, universais e positivos: “[…] universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente, positivamente, em direitos do homem. Ou, pelo menos, serão os direitos do cidadão daquela cidade que não tem fronteiras, porque compreende toda a humanidade; ou, em outras palavras, serão os direitos do homem enquanto direitos do cidadão do mundo”[3].
Buscar o bem-estar é se voltar para a justiça distributiva no campo social, promovendo uma equilibrada regulação das relações negociais, de trabalho e de direitos sociais, com expansão racional e efetiva de políticas públicas e de proteção. No caso do Brasil, o bem-estar foi constituído com um espectro ainda mais amplo e delineado sob a forma de promover o bem de todos, na “[…] qualidade de objetivos fundamentais, na perspectiva de valores encapsulados em princípios jurídicos, de forma inovadora, a Constituição Federal de 1988, no bojo de seu art. 3º, traz a enumeração daqueles fins fundamentais, que compõem o núcleo do bem comum da sociedade brasileira, em interface direta com os fundamentos da República Federativa do Brasil compilados no art. 1º, mas ainda mais umbilicalmente imbricado com o fundamento dos fundamentos do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana”[4].
Enquanto valores máximos também do nosso país, a dignidade da pessoa humana, o bem-estar e o bem de todos expressam-se em direitos ambientais (acesso a um meio ambiente equilibrado e saudável), sociais (trabalho, educação, saúde e segurança) e de governança (uso ético dos recursos públicos), que refletem, justamente, as práticas ESG.
Eis a razão da nossa assertiva de que os princípios traduzidos na primazia da pessoa humana e na promoção do bem de todos serem suficientes para fundamentar o ESG.
Mas a nossa CF/1988 vai muito além. Sem nos olvidarmos dos diversos comandos esparsos ao longo de todo seu corpo, que é extenso e denso, para o pilar ambiental (o E do ESG) dedica o Título VIII, Capítulo VI, “DO MEIO AMBIENTE”; para o pilar social (o S do ESG) o próprio Título VIII, “DA ORDEM SOCIAL”, além dos direitos sociais previstos nos arts. 6º ao 11; e, para o pilar governança (o G do ESG) o art. 37, que compele a administração pública direta e indireta a obedecer aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, entre outros, e que também servem para nortear a governança de todos os demais setores, além do público.
Em afunilamento para as normas infraconstitucionais, a suportar o pilar ambiental, o Brasil possui um corpo legal sólido — com destaque para a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) e o Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), entre outros — que permite amparar os direitos das pessoas até em casos pontuais e emblemáticos de descumprimento dos diplomas legais, como foi no caso de rompimento das barragens de rejeitos minerais em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, que geraram, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 84 mil ações em trâmite na Justiça mineira[5].
Com a dimensão dantesca do impacto ambiental gerado nesses episódios, o compromisso ESG da empresa responsável vem recebendo uma reviravolta e se volta a uma busca por práticas mais sustentáveis para mitigar os impactos de suas atividades e criar novos pactos com todos os stakeholders (aqui, usamos a definição ampla de stakeholder de “any group or individual who can affect or is affected by the achievement of the organization’s objectives”, de autoria de FREEMAN, R. E., em Strategic Management: A Stakeholder Approach, Boston, MA: Pitman, 1984).
Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem realizando um julgamento histórico da chamada “pauta verde”, que reúne diversas ações ambientais sobre omissões e mudanças em leis ambientais (ADPF 760, ADPF 735, ADPF 651, ADO 54, ADO 59, ADI 6.148 e ADI 6.808), sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, que já divulgou seu voto referente às ADPF 760 e ADO 54, lastreado no art. 225 da Constituição Federal e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de assegurar a todos um “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Segundo a ministra, “não compete ao STF escolher as políticas públicas mais adequadas na área ambiental. Mas é dever do STF assegurar o cumprimento da ordem constitucional para a preservação ambiental e proibição do retrocesso ambiental, de direitos fundamentais e democrático”[6].
Já no pilar social, a nossa legislação infraconstitucional também é extensa e inclui desde a CLT, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), Lei de Crimes de Preconceito de Raça ou Cor (Lei 9.459/1997) e o CDC, entre outros. O caso de um consumidor negro agredido e morto por seguranças em uma grande rede de supermercados, no ano passado, deixou evidenciado que o desfecho desse caso trágico foi diferente de episódios semelhantes que ocorreram no passado. Sem maiores delongas e necessidade de imputação de culpas in eligendo e in vigilando, além da assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a empresa responsável assumiu o compromisso de realizar ações de combate ao racismo, criar canais de denúncia antirracismo e de contratar 30 mil trabalhadores pretos no período de três anos, bem como de treinar os seguranças contra práticas de violência e racismo.
Por derradeiro, no pilar governança, o Brasil conta com inúmeras leis capazes de exigir posturas mais colaborativas e dar respaldo às práticas ESG, tais como a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas por condutas contra a administração pública em âmbito nacional ou estrangeiro, e a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), que estabelece regras gerais de licitação e contratação para as administrações públicas.
A Lei Anticorrupção gerou uma avalanche de investigações no país, sendo a mais notória a Operação Lava Jato, que, a despeito de todas as controvérsias, revelou um esquema de corrupção entre a então maior empresa nacional e um cartel de empreiteiras, que teve um impacto gigantesco sobre a reputação de todas as companhias envolvidas e quedas devastadoras no mercado acionário.
Ainda sobre governança, tem grande peso a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados, Lei 13.709/2018), notadamente diante de uma sociedade que, a cada dia, torna-se mais digital e submetida a constantes inovações tecnológicas. Na perspectiva do ESG, as empresas são responsáveis por coletar e tratar os dados pessoais, mantendo-os preservados de acessos não autorizados e vazamentos.
Em termos de normativos infralegais, temos os regramentos do mercado, como a Resolução CVM 59 da Comissão de Valores Mobiliários, que atualiza e padroniza o formulário de referência para empresas listadas em bolsa. Pela CVM 59, a partir de 2023, as empresas deverão informar se utilizam indicadores e métricas de ESG para avaliação de desempenho financeiro, disponibilizar informações de ESG sobre fatores de risco socioambientais, o inventário de emissões de GEE (Gases de Efeito Estufa) de suas atividades, se estão alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU (ODS) e se as informações divulgadas passam por auditorias[7].
E para o fecho, gostaríamos de registrar nossa forte discordância com a corrente “exclusionista” de que certos setores de negócios são naturalmente não ESG, ainda que lícitos e necessários para toda a coletividade, e que, por isso, as corporações que os exploram têm suas atividades taxadas como incompatíveis com as práticas ESG. Seria o caso das indústrias bélica, de energia fóssil e de mineração, entre outras, que vêm sendo alijadas de categorias socioambientalmente responsáveis e sustentáveis, especialmente de carteiras de fundos de investimentos com selo de sustentabilidade em ESG e ODS.
Como o ESG pode atualmente impactar consideravelmente o valor de uma empresa, é preciso, pois, dialogar no sentido de buscar caminhos para a inclusão de tais companhias com nova abordagem voltada ao compromisso de alteração para modelos de negócios que incluam as demandas ESG, de forma proporcional e razoável.
É o incluir, e não o excluir sistematicamente, que se coaduna com o espírito do ESG. Um exemplo que expõe essa questão, de que nem tudo se resume a um radicalismo de só branco ou só preto, vem da mudança da política de armamento da Alemanha, que, em vista da invasão russa na Ucrânia, resolveu aumentar seus gastos com defesa em mais de 2% do seu PIB, a fim de garantir a defesa do país, sua liberdade e prosperidade, nas palavras do próprio chanceler alemão, Olaf Scholz[8], cujo fundamento é preservar a soberania, a segurança e a existência, em exercício incontestável de direitos inalienáveis que cabem a qualquer país.
Como bem pontuado pelo escritor norte-americano Mark Twain, sempre voltado a analisar os dilemas éticos, “a gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso descer a escada, degrau por degrau”. E é isso que as práticas ESG estão a nos ensinar também pelos seus marcos legais, sejam por normas internacionais, supranacionais, constitucionais, infraconstitucionais e infralegais.
—
[1] LEE, Yun Ki; CARNEIRO, Lorena; BLUMBERG, Patricia; LEE, Kristian; FREITAS, Ricardo. Sustentabilidade em ESG e ODS: uma abordagem de processo prático de implantação. No prelo.
[2] LEE, Yun Ki. Fecho Reflexivo na Dignidade: Função da Livre Iniciativa de Promover o Bem de Todos. São Paulo: Editora Dialética, 2021.
[3] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. 26. tir. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[4] Ibidem nota 2.
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-11/rompimentos-barragens-geraram-84-mil-acoes-tj-mg.
[6] Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/VOTOADPF760.pdf.
[7] Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/resolucoes/resol059.html.
[8] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/03/15/guerra-na-ucrania-faz-alemanha-rever-suas-politicas-de-armas-e-energia.htm.
—
YUN KI LEE – Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados, mestre em Direito Econômico pela PUC-SP e professor de pós-graduação em Direito
—
Fonte: JOTA